quarta-feira, 24 de outubro de 2012

receita de despacho para nova vida.


desinfeta, despacha,
reza ajoelhada, em pé ou dançando,
capricha no despacho: galinha preta e charmosa (bem vivinha da silva!), farofa fresca e pipoca quentinha! pede a vontade, usa um vestido bem rodado e dança um samba do Vinícius, toma um gole da cachaça, arrepia a pele e livra alma.
desencaminha e desembesta por nova estrada, mesmo que seja imaginária, peixeira na mão e abre clareira na mata, e na mente.
estica a mão e encontra a mão de outra pessoa para segurar a tua, ou não.

vai só. pode ser que te encontrem lá na frente já refestelada pela nova via, sua via, nova vida e novidade.

SARAVÁ!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

De quando ela foi viajar (ou Das tampas das canetas mordidas)

o caderno estava posto sobre a mesa, a caneta com a tampa mordida também. eu sempre tinha reclamado desse hábito que ela tinha de morder a tampa da caneta Bic enquanto pensava. - você já reparou que não tem mais canetas inteiras? todas elas parecem ter as marcas dos seus pensamentos. - é sinal de que andei pensando demais nas últimas canetas que tive... meu caderno sabe bem dessas coisas. a cadeira, deformada pelo jeito torto dela sentar, sobre a perna, com cotovelo apoiado na mesa, tudo ali naquele canto parecia gritar de saudades: a cadeira com as marcas da perna, a escrivaninha vazia e sem sofrer o peso pontiagudo do cotovelo, o caderno e a caneta com a tampa mordida pareciam na iminência de se moverem instintivamente. tinha algum tempo que ela não se sentava mais ali naquele canto da sala do nosso apartamento. disse que estávamos perdendo a supresa um no outro, que parte do encantamento vem da surpresa, do inesperado. nós tínhamos nos tornado demasiadamente previsíveis um ao outro. ela sabia das minhas manias e esquisitices, a caneca preferida para tomar um café, o modo como catava o isqueiro instintivamente para acender um cigarro. via nela os gestos repetidos, as escovadas no cabelo quando saía do banho, o cheiro do xampú de romã que ela teimava em usar há alguns anos sob o pretexto de ter um cheiro pouco conhecido. - você já cheirou uma romã? - não, acho que não. - então, o meu cabelo tem o cheiro de algo que você nunca cheirou. sabia das camisetas de algodão que ela usava em casa, o arrastar de seu chinelo até a cozinha, o modo como abaixava para alcançar a garrafa de mate, duas pedras de gelo no copo azul e voltar ao quarto. - quer mate? a camiseta roçando levemente seus bicos dos seios ainda eriçados pelo ar frio da geladeira. conhecer um ao outro trazia um certo conforto inevitável, que nos tomava no domingo de manhã quando ela abria a janela, via os prédios lá fora e sempre retornava num pulo à cama para terminar de acordar. o cheiro dela enebriava e tirava um pouco da luz dos domingos. tinha nos cabelos ainda o rastro de romã, mas tinha o cheiro dela, que eu vasculhava em seu pescoço. a minha barba por fazer sempre fazia os pelos do seu braço acordarem, eretos, num reboliço que corria o corpo. - é tão bom acordar a minha pele com a sua barba por fazer, parece que tenho a certeza de que é domingo quando o meu corpo acorda assim. e o dia passava quase impercetível por entre discos que ela punha para tocar no som da sala, enquanto eu fervia água na cozinha para um macarrão. sempre temos macarrão aos domingos, na casa dela e na minha, desde o tempo de criança, macarrão se come aos domingos. os rock's que ela descobria durante a semana eram todos minuciosamente explicados a mim, de onde vinha o grupo, o que diziam as letras, como foram gravadas as canções e toda sorte de detalhes pudessem se esconder por entre os riffs alternativos. ouvia tudo atentamente, fazia comentários espassados e assistia o seu bailar na cozinha. como prêmio ela colocava um disco da bethânia e eu sempre dizia - a bethânia não é desse mundo... e ela respondia: - não, ela é do seu mundo. o macarrão era posto no prato, sentávamos à mesa da cozinha mesmo e o pé dela, ainda abraçado pela meia, escorregava pela minha canela e parava sobre o meu pé, na tentativa de cobri-lo, de tomar conhecimento, numa conversa entre pés, por onde eu havia passado, quais havia parado e como tinha voltado para casa. e quase não pude acreditar quando vi as suas malas postas no corredor, ouvi seus passos vindos do quarto, sequei uma lágrima que se anunciava na camiseta dela que estava em meu ombro. - eu volto logo. e quando eu voltar ainda vou ser a mesma que está indo agora. - eu acho que ainda vou estar aqui, parado, de frente à porta. - eu sei que você vai estar aqui e é por isso que não vou demorar. era a primeira vez que ficávamos longe um do outro desde que havíamos nos encontrado há uns anos atrás e me angustiava a minha ausência de memória de mim mesmo sem que ela estivesse do lado. toda trilha sonora ou fato ocorrido tinha o rastro dela e agora eu estava parado, com sua camiseta caída no ombro. o cachorro ao meu lado reclamava com latidos a fome que tinha e fui até a cozinha lhe dar a ração. sentei ao seu lado no chão e enquanto ele comia eu tomei uma xícara de café. entrei banho e usei o xampú dela. saí de casa com cheiro de romã, como se fosse assim uma espécie de muleta para me conduzir pelas ruas já que sua mão não estava ali a apertar a minha enquanto atravessava em passos rápidos a avenida. o telefone celular apitou, mensagem dela: sua camiseta listada vai comigo e me peguei cantando: 'e todos os meus nervos estão a rogar. e todos os meu órgãos estão a clamar.. e uma aflição medonha me faz implorar'. soube naquele instante que ela iria voltar a mesma, com minha camiseta na mala. 'eu te amo' foi a resposta que ela leu no celular antes de embarcar.
estou sentado com minha xícara de café na mão, um cigarro angustiado na outra, o cachorro sabe que ela está por voltar, parece sentir minha agonia, o caderno e as cantes Bic mordidas também celebram a iminente volta dela. compartilhamos por ela a mesma devoção e celebrávamos a ansiedade de ter o ar tomado por risada e histórias assim que a porta se abrisse.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

o cheiro de terra molhada.

poros abertos, pelos eriçados e o último arrepio percorre a coluna, invade a nuca e a toma por fim. um sorriso languido destoa, mostra os dentes alvos demais, covinhas nos cantos da boca e uma inclinação do pecoço que o alongava ainda mais e me dava espaço para vasculhar todos os cantos do lugar onde queria fazer minha morada. tinha nela uma espécie de alento, acalanto quase pueril que era tomado por um imenso desejo de fazer daquele sorriso e daquelas bochechas coradas algo permanente. não podia mais imaginar que em algum momento lágrimas escorreriam de seu rosto e eu não estaria lá para fazer uma graça que seria seguida de sua risada mais gostosa. nisso de gargalhar e sentir arrepios com os poros mais abertos que de costume, eu sentia seu cheiro ainda mais intensamente, quase conseguia materializa-lo, tocá-lo e o ter eternizado em minhas narinas. fazer dela o único cheiro que meu olfato seria capaz de sentir e sair pelas ruas enebriado e entorpecido. - não quero mais deixar de lado o tempo que posso passar te cheirando... - não sei o que tanto você me cheira. sabe que isso me deixa arrepiada. - cheiro para não te esquecer, para te fazer cócegas e para te ter em mim. - mas você já tem, estou aqui. - mas eu quero você em mim, por todo lugar e a qualquer tempo. e ficamos deitados nos lençóis de algodão que tinha no sítio e que já eram uma espécie de continuação dela naquele lugar. antes de cair no sono, porém, ela decidiu que queria um filho meu em seu ventre e que amanhã de manhã queria andar descalça enquanto a grama ainda estivesse úmida do orvalho da noite que testemunhávamos. segundo ela dizia, esse orvalho era a marca da noite anterior no dia que se anunciava, lágrimas de despedida que escorreriam inevitavelmente à terra preta, uma espécie de nostalgia da natureza nela mesma e seus pés a vasculhar e vilependiar este sublime momento de despedida da grama, do mato e da noite, tendo a terra, seus calcanhares e a mim como testemunhas. dormimos.

sábado, 25 de agosto de 2012

Ode a um bom canalha.


"Invejo a burrice, porque é eterna."

a frase acima, envolta em aspas, é do nélson rodrigues. ele teve, talvez a maior até hoje, capacidade cega - literalmente, nélson era quase cego - de desvendar nossas mais puras atrocidades.

pode ser daí, dessa inveja e da burrice, que venha a minha e a sua estupidez, como se tentássemos, em vão é bem verdade, obter uma eternidade desconhecida. será que teríamos a consciência a respeito deste plano mirabolantemente inteligente: ser estúpido para ser eterno? eterno para quem e por quem? ao final, eu, você, aquela vizinha gostosa e o padre joaquim somos todos estúpidos ao ponto de acharmos que temos ainda algum potencial de melhora. somos canalha, ao menos eu, a um ponto já sem controle ou pudor.
não, minha criança, somos incapazes de tamanha façanha.

vivas a nós, bons canalhas, que tem alma! viva!

domingo, 29 de julho de 2012

ode ao encontro (e ao desencontro também)


:

dos encontros e desencontros,
quando do acaso se faz um caso e estória inventada tem sim final,
mesmo que não seja feliz.
de dentro para fora e fazer da prosa um resultado de verbos no infinitivo:
cativar, depois de encontrar, marcar a ferro e fogo.
sem pretextos, sem relógios e sem roupas.

despojo as vestes e, nu, encaro a sua platéia com minhas vergonhas à mostra:
defeitos, preconceitos, cismas e manias.

sem disfarces, sem censura e sem pudor.
pele, pêlo e pau completam a cena dantesca.

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quarta-feira, 16 de maio de 2012

sobre a tal relevância de tudo ao seu redor

tudo que se toque, gente ou coisa, tem uma certa relevância, até um certo tempo. começa colorida, enebriante, vício, necessidade e compulsão. como cheiro de cabelo, de livro novo ou de posto de gasolina quando você é criança. o transcurso de dias, meses e anos tem a capacidade de desbotar memórias, trazem enjoo do cheiro do cabelo, acabam com o cheiro do livro novo e fazem você crescer e achar cara a gasolina.

a digestão e percepção do tempo não custam muita coisa, algum sofrimento, talvez, e isso vai depender sempre da sua necessidade de manutenção e estabilidade. o comodismo é um eterno aliado para manutenção do que tem de acabar, do que deve ter ponto final e encerrar capítulo. é este tal comodismo que protela e faz prosperar, falsamente, o que já perdeu sua relevância. o ser humano, numa insensata necessidade de cultuar, devotar, ser cultuado e ser devotado, é capaz de engolir e deglutir mais do mesmo, mais uma vez, pelo cagaço da mudança eminente.

algumas coisas são certas amigo: o cheiro do cabelo tem de ser tão intenso que se torne imperceptível para não enojar, o livro deve ter páginas amareladas ou folhas novas com conteúdo passageiro e o posto de gasolina... bom, é melhor não ter carro.

bom também, meu amigo, é mandar um foda-se generalizado, fazer uma faxina, interromper esse tal de tempo, desregular a evolução e sua cadência, atrapalhar essa medida de relevância e renovar, recomeçar, resetar. separar roupas do armário que você não usa há mais de um ano, terminar um casinho (quase) amoroso, emprestar o livro para um amigo que (com certeza) não o irá te devolver com dobras e marcas indesejadas e vender o carro (se você ainda insiste em tê-lo). essas chacoalhadas no seu universo, ao redor do seu umbigo, vão te fazer sentir uma renovação repentina, uma deliciosa sensação de liberdade, que fatalmente será interrompida por qualquer rotina que se anuncie, um vencimento do aluguel, por exemplo, e você começará a sentir o Mr. Tempo de volta, a correr em sua direção e PAH! aquela trombada da realidade, que se aliou ao tempo só pra te sacanear.

é, dentre as coisas que são certas, a mais certa de todas é a conclusão de que o mundo não gira ao redor do seu umbigo e que, à exceção de (no máximo) meia dúzia de pessoas, ninguém quer saber de suas aflições, dores, dúvidas e piadinhas infames. o mundo está ocupado demais para cuidar de você.


há braços!