quinta-feira, 6 de junho de 2019

dos pensamentos nos pedaços de papel (ou da senhora que atravessa a rua)

puxou uma cadeira e sentou-se.
paralisado, ainda atônito, não sabia dizer que dia tudo aquilo tinha acontecido. sabia que haviam se passado algumas noites porque sentia o cansaço e esgotamento tomando conta de seu corpo depois de uma sequencia de noites mal dormidas, cigarros e garrafas de vinho. seu suor cheirava a tristeza e álcool. sem que falasse uma palavra, o jovem atendente trouxe uma xícara fumegante, o líquido escuro espelhava sua sombra escurecida com uma barba espessa e hirsuta que há alguns anos era obrigado a retirar em ritual matutino repetitivo antes de ir pro trabalho.
os dedos formigavam, sentia muito suavemente o calor da alça da xícara, levou à boca e sorveu o líquido negro e amargo.
parecia recobrar a consciência e lembrou-se que não tomara banho todos esses dias. longas caminhadas e o calor do verão faziam com que emanasse um cheiro acre de seu corpo.
enfiou a mão no bolso, tirou pedaços de papel com anotações que havia feito para que não esquecesse todas as resoluções e possibilidade que haviam passado por sua mente nesses dias de tempestade. leu alguns deles. nada fazia sentido.uma caligrafia obtusa, quase ininteligível e que em nada se assemelhavam à sua escrita regular. parecia ter sido tomado por uma força, ou como se tivesse transmutado seu corpo regular em um animal selvagem. não reconhecia a si mesmo na dor que vertia dos papeis, nas palavras violentas e abjetas que narravam como um diário de penitência o que havia sucedido.
deixou uma nota de 5 reais em cima da mesa junto com alguns desses pensamentos, a xícara em cima de tudo.
saiu do café e caminhou pela calçada. andou alguns metros, parou, respirou fundo e cumprimentou uma senhor que cruzava a rua em sua direção. coçou a barba, o sol fustigava seu rosto e o couro desgastado de sua jaqueta. deu meia volta, "preciso tomar um banho" e voltou pra casa.