quarta-feira, 26 de maio de 2010

na parede da memória

ainda lembro do tempo em que ela esteve por aqui. inconstante, cheia de interrogações e tranbordando afeto, o lar parecia mais cheio com sua presença. era como se a magia dela encantasse os móveis e os quadros antigos pendurados na parede. logo cedo tinha a mania de cantarolar versinhos que inventeva na hora. melodias conhecidas com letras criadas por ela. dava 'bom dia' com um sorriso e continuava o seu processo de criação.

esticava o braço e pegava um pedaço de pão, levava um copo de suco para o quarto e escolhia a roupa para sair de casa. com o passar do tempo comecei a perceber que muito da canção interferia em como seria o seu dia, era como se a música fosse um prenúncio do que iria acontecer e das coisas que iria fazer. entre uma melodia e outra fazia um cometário qualquer que eu sempre respondia com um sorriso no rosto, tentando encurtar a conversa pra ter minha trilha sonora de volta.

escovava o cabelo sempre que eu estava amarrando meus sapatos e passava a mesma escova pelos meus cabelos, como quem queria me incluir naquele ritual e seu cheiro ficava. abaixava delicadamente para catar a bolsa e pequenas coisas que lhe seriam úteis e eu a idolatrava, olhando as curvas das suas pernas, torneadas pelo salto alto e alarmadas pela saia ligeiramente acima do joelho.

os passos ritmados iam me esperar na sala, a tv, que falava sobre algum fato importante que já tinha acontecido naquele início de manhã, silenciava. e todo dia neste momento ela anunciava nosso atraso. precisávamos correr e eu só queria parar. queria que o mundo me desse a chance de ouvir mais um pouco daquela melodia e que ela ficasse entoando em meus ouvidos o resto do tempo.

não me recordo há quantos anos ela desligou a tv pela última vez, ou quais foram os últimos versos rimados em suas canções inventadas, mas ainda a vejo saindo do banheiro, deslizando a escova sobre os cabelos caramelados, ainda sinto o cheiro que ela deixava quando saía do banho. ela parece não ter envelhecido, tenho certeza que a reconhececeria somente pela voz.

hoje estou deitado, não há mais múisica, notícias, atrasos, pães frescos e cantoria. os quadros nas paredes acabaram de envelhecer e dificilmente um sebo do centro da cidade os trocaria por um punhado de livros. eu envelheci.

o sol já lambe a janela há algum tempo e eu viro para o lado na tentetiva vã de recomeçar aquele sonho, com aqueles sons.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Inebriado

tuas curvas desalinham meu horizonte
desorientado, és meu norte
guio-me em tua direção
o caminho da minha vida está onde estiveres

ponho o corpo perdido pela estrada
os zunidos cortam o ar, dilaceram os pensamentos
num impulso salto em disparada
perdido, esbarrando em outros destinos

o corpo pende, caído, a mão toca a terra úmida
passando por entre os dedos
que já te tocaram

o horizonte deformado é tão distante
melhor ficar com as costas tocando o chão
olhando o céu, liso e límpido,
sem teus traços nele

fecho os olhos,
tuas linhas e curvas misturadas à terra úmida de minhas mãos.