quinta-feira, 6 de junho de 2019

dos pensamentos nos pedaços de papel (ou da senhora que atravessa a rua)

puxou uma cadeira e sentou-se.
paralisado, ainda atônito, não sabia dizer que dia tudo aquilo tinha acontecido. sabia que haviam se passado algumas noites porque sentia o cansaço e esgotamento tomando conta de seu corpo depois de uma sequencia de noites mal dormidas, cigarros e garrafas de vinho. seu suor cheirava a tristeza e álcool. sem que falasse uma palavra, o jovem atendente trouxe uma xícara fumegante, o líquido escuro espelhava sua sombra escurecida com uma barba espessa e hirsuta que há alguns anos era obrigado a retirar em ritual matutino repetitivo antes de ir pro trabalho.
os dedos formigavam, sentia muito suavemente o calor da alça da xícara, levou à boca e sorveu o líquido negro e amargo.
parecia recobrar a consciência e lembrou-se que não tomara banho todos esses dias. longas caminhadas e o calor do verão faziam com que emanasse um cheiro acre de seu corpo.
enfiou a mão no bolso, tirou pedaços de papel com anotações que havia feito para que não esquecesse todas as resoluções e possibilidade que haviam passado por sua mente nesses dias de tempestade. leu alguns deles. nada fazia sentido.uma caligrafia obtusa, quase ininteligível e que em nada se assemelhavam à sua escrita regular. parecia ter sido tomado por uma força, ou como se tivesse transmutado seu corpo regular em um animal selvagem. não reconhecia a si mesmo na dor que vertia dos papeis, nas palavras violentas e abjetas que narravam como um diário de penitência o que havia sucedido.
deixou uma nota de 5 reais em cima da mesa junto com alguns desses pensamentos, a xícara em cima de tudo.
saiu do café e caminhou pela calçada. andou alguns metros, parou, respirou fundo e cumprimentou uma senhor que cruzava a rua em sua direção. coçou a barba, o sol fustigava seu rosto e o couro desgastado de sua jaqueta. deu meia volta, "preciso tomar um banho" e voltou pra casa.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

conversa com pássaros e cigarros

nunca consegui compreender direito o meu corpo. há pessoas que dizem sentir o limite do corpo, como se fosse uma máquina e ele o dono dessa máquina. consegue gerir a máquina, brincar entre o limite e o descanso total. nunca consegui sequer acreditar nessa capacidade, sempre achei meus amigos e todas as demais pessoas também, antes de tudo mentirosas. o meu corpo sempre foi  independente de mim, formamos por alguns anos uma boa parceria, mas de uns tempos pra cá a máquina não consegue acompanhar a mente. é como se houvesse uma defasagem entre a evolução dos dois. minha filha diz que é culpa do cigarro, e que se não fossem as dezenas de anos de fumaça correndo pelos pulmões eu teria uma velhice bem mais agradável. ela diz que eu poderia viver mais e melhor. certo que até poderia viver mais, mas tenho minhas dúvidas se viveria melhor. ela disse algo sobre caminhadas. acho que ela queria que eu andasse com ela no parque perto de casa. sempre que vou eu me sento no banco à sombra de uma amendoeira e fico lendo um livro qualquer, brinco com cachorros que passam por ali e comemoro a cada volta que ela completa ao passar por mim com palavras de incentivo. respiro e sinto que meus pulmões expandem com dificuldade, como que cansados do tempo e da fumaça que lhe atrofia lentamente ao longo dos anos. suspiro lentamente, levo a mão ao bolso da camisa social azul e tiro um cigarro, risco um fósforo e ouço um pássaro cantar logo acima de mim, mas não consigo enxergá-lo. sempre admirei as pessoas que conhecem o canto dos pássaros, são tão íntimos que consegue diferenciar os cantos da mesma espécie em diferentes regiões. é como se essas pessoas entendessem a língua dos pássaros e ainda dominassem os dialetos regionais. ouvi alguém comentar uma vez que meu avô era assim e que até respondia os pássaros, estabelecia uma ligeira conversa, um cumprimento fraternal com aqueles que moravam no sítio. não me lembro muito desse meu avô, eu mesmo hoje sou avô e não tenho muita certeza se serei lembrado. minha filha passa novamente correndo esbaforida, pego outro cigarro e abro o livro. o pássaro foi embora.

eu sinto dor

todo ar que respiro é transformado em redemoinho de punhais que me rasgam por inteiro. o sangue que verte destes ferimentos inunda o pouco que ainda carrego de mim mesmo. eu sinto dor. uma dor tão pungente que fez de minhas veias e vasos as suas raízes e agora não há parte de mim que não seja somente dor. todos os meus gestos e falas resultam em um grito surdo, que estremece todas as minhas estruturas, trinca meus ossos e produz ainda mais dor. ninguém pode me ouvir. eu sinto dor. a minha dor parece querer me afogar, falta o ar e sinto os braços e pernas dormentes, resta somente o oxigênio do último respirar. o corpo entorpecido. a dor é como correnteza que me puxa e me navega, depois deixa-me à deriva em um remanso e tira de mim o norte do caminho que queria seguir. não me lembro mais do caminho. eu sinto dor. o passado que me atormenta e que me tira o sono, vozes que gritam e me chamam para cobrar dívidas que eu não posso pagar. não tenho dormido há muito tempo, levo a vida com sonolência, entre cochilos breves e entorpecido. eu sinto dor. e não há mais nada em mim que ainda não esteja tomado e inerte. meus olhos absortos não conseguem enxergar e minha mente anuviada apagou as lembranças de tudo que senti, dos lugares por onde andei e dos amores que vivi. eu sinto dor. tudo que fui resultou somente em dor e feridas que insistem em sangrar, gritos desesperados que imploram clemência das chagas que me atormentam e se acumulam nas paredes em que ergui e fiz a minha morada.eu sinto dor. e já não sinto mais nada.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

um gole de chá.

respirava profundamente com os olhos fechados e os cotovelos apoiados na mureta que separava a varanda do jardim. era um gramado verde reluzente a essa hora da manhã, tinha floreiras por todo o caminho que chegavam a um lago, sempre gelado a essa época do ano. havia um ritual nostálgico nesse respirar profundo. ela dizia que era capaz de refazer o caminho e os passos dos dias de verão em que saíam nus da varanda até o lago, sentia o vento que tocava seu corpo e causava seguidos arrepios, também era capaz de perceber o aroma da florada de cada um dos canteiro bem cuidados que se espalhavam pelo caminho.
nunca tinha percebido esse aroma, nunca notara os arrepios e a textura da grama na sola do pé. somente agora, depois de passados alguns anos - nem se sabe quantos ao certo - é que é capaz de sentir todos os detalhes.
a água parecia um espelho, água tranquila e calma que corria por uma canaleta do outro lado da margem à esquerda. ao lado direito corria um filete de água das rochas e era impossível acreditar que aquela goteira era capaz de encher um lago. pelo menos era isso que ele havia dito a ela na primeira vez que ela notou aquele trabalho maçante da natureza ao fundo.
foi depois que ele apareceu que ela adquiriu o hábito de mergulhar de cabeça na água, sem saber o certo a sua temperatura e sem especular como sua pele receberia aquele banho matinal, se com frio ou o alívio refrescante do verão. nadavam descompassadamente, de uma margem a outra, cruzavam as braçadas do nado, davam-se as mãos nas partes mais fundas e entrelaçavam-se as pernas quando estavam apoiados nas rochas.
o sol tomava o lago e deitavam à margem quando saíam da água. ela apoiava a cabeça no peito dele e já sentia os pelos braço eriçarem quando ele prendia os dedos por entre seus cabelos. ficavam lá deitados, sem tempo e sem pressa. notavam o fim da manhã com a mudança de posição do sol, a pele e o cabelo já secos.
caminhavam de volta à varanda enquanto ele explicava em pormenores o sistema de fertilização e polinização das flores naquela região. ela não entendia bem dessas naturezas, mas ficava encantada com a devoção que ele a dedicava em toda a explicação. comparavam o tamanho das rosas e a fazia lembrar que elas maiores no verão passado, que isso poderia ser um processo de enfraquecimento do solo. pelo que ela entendeu, o solo precisava de nutrientes para que as rosas crescessem bem. ele se comprometeu a adubar aquele canteiro e ela sentiria que as rosas seriam maiores e mais intensas na próxima florada.
sempre que chegavam à varanda eles encontravam duas toalhas secas e bem dobradas postas em cima da cadeira de madeira. sobre a mesa repousavam um bule com chá fumegante e uma garrafa térmica com um café levemente adocicado.
ele tomava chá e ela tomava café recostados no sofá.

é sempre neste momento que ela interrompe o ciclo de respirações longas, abre os olhos com alguma dificuldade por conta da luminosidade do sol e enxerga o jardim, o lago ao fim do tapete verde, enlaça os dedos ao redor da caneca e toma um gole do líquido quente.

ela não toma café há muitos anos. o hábito perdeu o sentido quando deixou de tomar banho no lago e o toque da água em sua pele passou a ser uma lembrança em sua memória.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Desfazimento de Discos (ou Prelúdio de Inverno)

café fumegante, ar gelado da manhã de inverno.
os olhos custam a abrir e entender tamanha claridade.
pele arrepiada e pelos eriçados, envolve a xícara com as duas mãos,
em vão.

hoje é o calor da presença dele pela casa o que faz falta,
este silêncio em eco constante é o que esvazia
e uma fina camada de poeira sobre os discos,
em vão.

o toque de sua coxa por entre as minhas pernas,
dançávamos em cadência lenta
e hoje tropeço por não saber caminhar só,
em vão.

sorvo o caldo negro amargo pacificamente enquanto esfria na caneca
eu também perco o calor fumegante,
você era o incêndio em mim, o fogo se apaga e estou só na clareira aberta,
em vão.

acabo de pensar algo em sua homenagem,
publicarei no jornal:
"vende-se vitrola e conjunto de discos em bom estado de dança".

quarta-feira, 13 de julho de 2016

elucubrações antes de conferir os meus recados na caixa postal.

nos últimos tempos tenho sido tomado de assalto por sensações de perda iminente, uma espécie de um grande susto de uma quase-perda. seja por motivo de doenças fatais - socialmente classificadas em hereditárias, adquiridas ou merecidas (segundo tendência religiosa de alguns) -, seja por preenchimentos de espaços físicos, decorrentes do transcorrer do tempo ou mesmo do rumo que vida tomou, e uma forte lembrança vem à mente sem que você possa compartilhar aqueles pensamentos esbranquiçados e esmaecidos pelo tempo. a pessoa, os objetos de cena, as falas e o lugar são uma lembrança decadente do que o evento em si representou quando de seu acontecimento.

aceitar o correr do tempo, o perecimento das coisas e pessoas, e compreender o desafio de se prolongar no tempo e de ser testemunha de sua própria (e pequenina) existência é algo ao qual ainda não somos capazes de nos acostumar ou de aprender. os processos de assimilação e somatização destas perdas e andanças são próprios de cada um e, por mais que eu tenha tido vontades lampejantes de procurar um bom terapeuta, que fosse capaz de me ouvir e conduzir a uma resposta ainda que simplória sobre algumas dúvidas que me afligem com grande urgência, entendi que os questionamentos também evoluem em conjunto com estas perdas e o tempo que escorre por entre tudo isso.

o que eu quero dizer é que jamais poderemos ser capazes de responder às tais questões que nos afligem porque o tempo continua a sua cadenciada saga de tiquetaquear, enquanto que eventos, fatos e pessoas se sucedem em nossas vidas. o cenário, mutante por si só, não permite que as dúvidas sejam esclarecidas, que as perguntas sejam respondidas, ou que haja uma mínima compreensão sobre a loucura que nos cerca e nos toma de assalto pela tal 'sensação de perda iminente'. a bem da verdade, na maioria das vezes, a perda já aconteceu e não se trata de uma 'perda iminente' ou de uma 'quase-perda', mas são estas as acepções que desenvolvemos para lidar e enfrentar o luto e desvio de nossa atenção, apego e dependência a outras coisas, pessoas e lugares.

não há o que você e eu possamos fazer a respeito. aceitemos que pessoas nascerão, algumas morrerão e que outras revelarão seu caráter num deslize assustador. aceitemos que novas avenidas serão abertas, que nossos parques e praças de infância serão 'reformados', construídos e adaptados a novas necessidades e alergias infantis. aceitemos que o tempo está a tiquetaquear desde os primórdios e que o seu escorrer por entre os dedos afligiu tantas outras gerações que também perderam seu tempo a pensar no próprio tempo.

veja, os processos de perda acontecem sorrateiramente, ainda que nas grandes fatalidades, porque a própria existência anuncia que estamos sujeitos às catástrofes, sejam elas emocionais ou rodoviárias. não temos tempo de buscar respostas a perguntas que se tornam obsoletas a partir do momento que são formuladas em nosso íntimo, pois a sua própria existência pressupõe a observância, elucubração e constatação a respeito de um cenário e estado de coisas que não se reproduz mais em nenhum canto além de sua própria, vã e melodramática consciência.

seremos ainda tomados de assalto, eu ainda o sou, porque temos esse instinto animalesco de proteção e uma imensa necessidade de comover o outro. esta comoção serve para nos humanizar, fazer-nos mais tangíveis e compreendidos nos processos de dor e perda. nada além de uma pequena encenação social, de auto-convencimento e aceitação.

quando comecei esta divagação alguns parágrafos atrás, eu estava a escrever sobre perdas, mas o tempo passou enquanto me regojizava e deleitava com adjetivos e predicativos que escolhia ao acaso para a descrição dos meus pensamentos, e sou novamente tomado por assalto ao perceber que os processos de 'perda iminente' que haviam se iniciado acima já não são mais tão iminentes assim e podem já estar em vias de serem consumados, haja vista o tempo que sempre me leva a tarefa de escrever e corrigir aquilo que escrevo. melhor conferir meus recados e checar se perdi algo por entre estas linhas.


sábado, 22 de junho de 2013

no canto do olho, a menina dança

um salve a você que comprou todas as brigas - as suas e de outros, que muitas vezes mal conheceu -, que deixou o bonde passar, o baile rodar e deixou a vela derretendo no prato perdido em preces e cercado por relicários (a quais santos mesmo?).
um caloroso abraço a você que promete, finge, foge. você, cagão pela própria natureza, que baixou a cabeça e seguiu em cadência miúda, mínima, tão pequenininho. a você que prefere sentar à borda e analisar a profundidade da água e analisar a queda antes do mergulho de cabeça, que evita o cansaço da tentativa e que se perde em miudezas e pequenezas por entre mesas de bares e que brinda o brinde alheio.

a todos os dias bem (e mal) vividos. os amores sentidos e transados, às peles que cheiramos, aos pelos que arrepiam. também cigarros fumados, copos sorvidos e dias perdidos. aos livros lidos, aos perdidos, emprestados. amigos que foram, outros que vieram e os que deixamos partir quase que numa sensação de morte-viva.

o melhor brinde é ao oxigênio inalado, que ainda inunda seu pulmão de vida, quase num afogamento a seco. melhor é respirar, sentir por todos os poros que se possa sentir, esquecer dos poros desperdiçados, do oxigênio transmutado em carbono que sai de nós, morto. respira, puxa a cadeira, roda a baiana.