terça-feira, 30 de outubro de 2018

conversa com pássaros e cigarros

nunca consegui compreender direito o meu corpo. há pessoas que dizem sentir o limite do corpo, como se fosse uma máquina e ele o dono dessa máquina. consegue gerir a máquina, brincar entre o limite e o descanso total. nunca consegui sequer acreditar nessa capacidade, sempre achei meus amigos e todas as demais pessoas também, antes de tudo mentirosas. o meu corpo sempre foi  independente de mim, formamos por alguns anos uma boa parceria, mas de uns tempos pra cá a máquina não consegue acompanhar a mente. é como se houvesse uma defasagem entre a evolução dos dois. minha filha diz que é culpa do cigarro, e que se não fossem as dezenas de anos de fumaça correndo pelos pulmões eu teria uma velhice bem mais agradável. ela diz que eu poderia viver mais e melhor. certo que até poderia viver mais, mas tenho minhas dúvidas se viveria melhor. ela disse algo sobre caminhadas. acho que ela queria que eu andasse com ela no parque perto de casa. sempre que vou eu me sento no banco à sombra de uma amendoeira e fico lendo um livro qualquer, brinco com cachorros que passam por ali e comemoro a cada volta que ela completa ao passar por mim com palavras de incentivo. respiro e sinto que meus pulmões expandem com dificuldade, como que cansados do tempo e da fumaça que lhe atrofia lentamente ao longo dos anos. suspiro lentamente, levo a mão ao bolso da camisa social azul e tiro um cigarro, risco um fósforo e ouço um pássaro cantar logo acima de mim, mas não consigo enxergá-lo. sempre admirei as pessoas que conhecem o canto dos pássaros, são tão íntimos que consegue diferenciar os cantos da mesma espécie em diferentes regiões. é como se essas pessoas entendessem a língua dos pássaros e ainda dominassem os dialetos regionais. ouvi alguém comentar uma vez que meu avô era assim e que até respondia os pássaros, estabelecia uma ligeira conversa, um cumprimento fraternal com aqueles que moravam no sítio. não me lembro muito desse meu avô, eu mesmo hoje sou avô e não tenho muita certeza se serei lembrado. minha filha passa novamente correndo esbaforida, pego outro cigarro e abro o livro. o pássaro foi embora.

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