terça-feira, 1 de dezembro de 2009

prelúdio II

ela ainda procurava seus óculos pela cabeceira de mogno ao lado da cômoda. tateando por entre o abajur e o rádio-relógio puxou os olhos de vidro pelas pernas, do mesmo jeito que faz há mais de 25 anos. desde que seu falecido marido a levara para conhecer aquela que seria a casa da família, ela já sabia que passaria o resto da vida tateando por entre aquelas paredes.

no começo ela não queria mudar da casinha de dois andares no bexiga. ela gostava do cheiro de massa e de tomate que tomava a rua todas as manhãs, era como se fosse um prenúncio dos operários que invadiriam as ruas do bairro, rumo aos seus lares para o almoço com sua mulher e filhos. em duas, ou três horas no máximo, o sino da fábrica soaria e eles surgiriam como miragem ao fim da rua.

ela não queria mudar porque sabia que não conseguiria sair dali por inteira, seus olhos ficariam ali para sempre e é por isso que hoje tateia a cômoda da cabeceira.

mas como não tinha muita opção, teve que mudar-se para a casa na lapa. era a casa própria, comprada com o adiantamento dado pelo chefe do marido e algum dinheiro emprestado pelo banco. nunca entendeu bem como funcionavam as finanças mais complexas da casa, o máximo que sempre conseguiu fazer, e que fazia bem, era apresentar quinzenalmente o total das despesas no armazém. ela era capaz de dar conta de cada quilo de carne comprada, como fora preparada e o quanto cada um comera naquela ou noutra refeição. fato é que o dinheiro já não fazia mais tanta falta e à medida que o dinheiro se multiplicava, menos seu marido queria saber das suas contas no armazém e menos ainda estava disposto para ouvir suas histórias acerca desse ou daquele tipo de carne e de quanto tempo gastou na cozinha até que ficassem daquele jeito que foram à mesa.

foi andando com o ombro vez ou outra tocando na parede, como se buscasse um ponto de referência para guiar os passos ainda cegos. ainda insistia em acordar cedo e, como que por instinto, pegava na maçaneta do quarto dos filhos para acordá-los. só quando abria a porta e via as paredes descascadas e o entulho que tomara conta do cômodo ao longo dos anos é que se dava conta de que não havia mais ninguém em casa. mesmo assim conseguia ouvir os filhos resmungando que ainda era muito cedo e se contorcendo na cama tentando prender o sono na palma das mãos.

ainda sente o cheiro deles de manhã quando saíam do banho. eram as crianças mais lindas do bairro, quiçá do mundo inteiro, dizia ela enquanto beijava o rosto dos meninos. quando eles tomavam o café, cada um a seu jeito, ela embrulhava maçãs, sanduíches e espremia laranjas para o lanche deles. por cima do ombro pedia que não brigassem e olhava para o corredor para ver se o marido surgiria dando o nó em sua gravata. mas há muito tempo que ele começou a trabalhar mais cedo e quando saía de casa todos ainda dormiam.

ela senta na cadeira de balanço, pega o jornal do dia para ver as fotos. ela consegue entender o que aconetec no mundo sem sair de casa somente lendo as fotografias do jornal. as untas do corpo lateam e espalham uma dor contínua que ela não se recorda do dia em que elas surgiram. sabe apenas que foi na mesma época em que o marido começou a ter reuniões noturnas e sua presença na casa tornou-se ainda mais vaga. os meninos não tinham coragem de perguntar mais pelo pai e sempre receber como resposta o olhar dela cheio de amargura. sentia que estava envelhecendo e que ele deveria estar nos braços de alguma secretária bilíngue se preparando apara acordar.

essas coisas aconteceram há tanto tempo que as referências do passado começam a se confundir em sua cabeça e já não sabe se os filhos partiram primeiro ou se foi o marido. a solidão é tamanha que parece querer apagar o passado para dominar sozinha a mente e o corpo. o arrastar dos chinelos pelos tacos do piso da casa são os únicos sons que ela tem ouvido habitualmente, o ressoar pela madeira faz com que a casa inteira saiba pra onde ela está indo. ao chegar na cozinha abre a porta da geladeira e tira o pote plástico com a única refeição que vai fazer no dia, come aos poucos e até a janta ainda tem uma porção. a comida quem faz é a faxineira falante que aparece uma vez poir semana e consegue fazer um relato dos fatos mais importantes de sua vida enquanto puxa o sofá velho e varre por detrás dele. ela mal presta atenção nas histórias da mulher e aproveita para ver se consegue se lembrar da sua.

ela tranca a porta do quarto dos filhos para que a faxineira não mexa em nada. só ela arruma o quarto quando sente saudade dos filhos que já morreram. encosta o ombro na parede e vai até o quarto pra se deitar e procurar o sono que há muito tempo perdeu.

amanhã é dia da faxineira falante aparecer, e ali deitada na cama ela já começa a amontoar os acontecimentos na mente para começar a organizá-los assim que o sofá começar a ser arrastado. enquanto isso, do outro lado do mundo, uma moça descobre seu corpo nu e o desejo que está preso nele. sente inveja do corpo, do desejo e da moça que sequer conhece a feição.

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